NOTA TÉCNICA POR FERNANDO LANDULFO*

Quem tem automóvel já passou pelo menos uma vez pelo apuro de, logo após abastecer, o veículo começar a apresentar “falhas” de funcionamento (que às vezes impossibilitam a sua condução), um grande aumento de consumo, assim como, no caso de motores de alta performance que consomem gasolina “premium”, detonação (batida de pino).

Sintomas típicos da utilização de combustível adulterado.

Seja lá qual for a razão (atração por preços muito baixos ou necessidade de um abastecimento emergencial), muitos consumidores são vítimas de uma minoria de comerciantes inescrupulosos que cometem um crime contra a ordem econômica, previsto no artigo 1º da Lei 8.176, de 08 de fevereiro de 1991 [1]: a venda de combustíveis adulterados.

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem econômica:

I – adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico, hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei;”

Só que as mazelas provocadas por essa prática não se limitam apenas a problemas superficiais de curto prazo, que são resolvidos com a simples substituição do combustível.

Já é de pleno conhecimento dos “Guerreiros das Oficinas” que a utilização de combustíveis adulterados costuma provocar, a médio e longo prazo, defeitos de difícil diagnóstico e solução complicada e cara. 

Isso sem falar de um outro trabalho que precisa ser muito bem paralelamente desenvolvido: o convencimento do cliente. Algo que precisa ser muito bem fundamentado e evidenciado.

O dono do veículo (o cliente) não tem a menor ideia de como ser ressarcido dos prejuízos a que foi submetido. Prejuízos esses que, na maioria das vezes, não se limitam ao reparo do veículo: lucro cessante, e outros danos.

Prejuízos esses que não costumam ser cobertos pelas seguradoras. Como afirma Patrícia Luyse [2]:

“Geralmente, o combustível adulterado traz danos ao motor do veículo e isso não está nas coberturas do seguro de carro”.

Uma situação que se torna desesperadora quando não se dispõe dos recursos necessários para autorizar o reparo do veículo, principalmente quando este é utilizado como ferramenta de trabalho. Ou seja, via de regra, tudo culmina no endividamento do dono do veículo.

A única forma de se obter um ressarcimento é junto àquele que vendeu o produto adulterado que provocou os prejuízos. Como afirma Jennyfer Elaine [3]:

  • A primeira e mais importante informação que deve saber é que você tem direito a ser reembolsado pelo posto de combustível, caso abasteça seu veículo com um produto adulterado e ele danifique seu automóvel”.

No entanto, é ato de pura inocência esperar que, diante de uma reclamação,  aquele que vendeu um produto de má qualidade tenha atitudes passivas e altruístas. Muito provavelmente, ele negará e lutará com todas as suas forças, pois sabe que, além de arcar com contas bem altas (prejuízos, multas, fechamento do estabelecimento etc.), pode ir parar na cadeia (está previsto na lei [1]).

E por essa razão, numa considerável parte das vezes, a cobrança culmina em uma ação judicial.

Mas vale a pena? Bem, levando-se em consideração:

  1. Que os consertos oriundos dessa “malandragem” não são nada baratos;
  2. As despesas e prejuízos paralelos incorridos: lucro cessante, taxi, aplicativos, aluguel de veículo, etc;
  3. A perda de tempo e o aborrecimento que se tem;
  4. Que se devidamente provado o dolo do comerciante, na sua condenação ele arca com todas as custas processuais, incluindo honorários advocatícios;

A princípio, a resposta seria um sonoro sim.

No entanto, é preciso lembrar que ações judiciais não são imediatas e incorrem em despesas (honorários de advogado, exames laboratoriais, perícias judiciais etc.)  e algum trabalho paralelo durante o seu desenvolvimento.

Assim sendo, essa decisão cabe a cada um, após refletir sobre a sua situação particular.

Mas afinal de contas, o que é a definição de gasolina adulterada?

Farah [4] e Petrobrás [6] definem gasolina como sendo uma mistura de hidrocarbonetos parafínicos, normais e ramificados, olefínicos normais e ramificados, aromáticos e naftênicos, entre 4 e 12 átomos de carbono com faixa de ebulição entre 30 °C e 220 °C.

Ozaki [8] complementa, afirmando que a composição da gasolina pode variar de acordo com a origem do petróleo e dos métodos utilizados pelas refinarias. Como exemplo, cita os resultados de duas cromatografias gasosas de duas gasolinas, produzidas por duas diferentes refinarias nacionais, que apresentaram resultados bem distintos nas suas composições. 

No que diz respeito aos requisitos de qualidade, Farah [4] afirma que uma gasolina automotiva deve apresentar:

  1. Octanagem adequada (combustão sem detonação): depende das naftas utilizadas na composição e a adição de compostos (aditivos). Por exemplo o etanol anidro.
  1. Vaporizar-se adequadamente em diversas temperaturas: para tanto, utilizam-se na composição frações leves, médias e pesadas, para atender todas as etapas de funcionamento do motor. 
  1. Possuir estabilidade química: deve ser estável, química e termicamente, para evitar a formação de depósitos, que afetam a durabilidade, desempenho dos motores. 

Segundo essa mesma referência [4], a formação de depósitos no interior dos motores é decorrente da existência de:

a) Substâncias que formam resíduos de carbono (função do ponto final de ebulição da gasolina);

b) Substâncias poliméricas pastosas, conhecidas como gomas.

Segundo Farah [4], a formação da goma é fruto da oxidação de compostos instáveis, como as diolefinas. O processo se inicia pelas reações de oxidação, formando radicais livres. Posteriormente, tem-se as reações de polimerização que levam à formação de sedimentos. 

Farah [4] afirma ainda que essas substâncias poliméricas ficam dispersas na gasolina e não se vaporizam nas condições de funcionamento do motor, deixando resíduos que podem se depositar no sistema de alimentação e/ou câmara de combustão. 

De acordo com essa mesma referência [4], a presença de goma na gasolina é avaliada pelo ensaio denominado “goma atual”. Já a sua estabilidade é avaliada pelos ensaios de período de indução e de goma potencial.

  1. Ser compatível com os materiais do motor.

Segundo Farah [4], a compatibilidade da gasolina com os materiais do motor é avaliada pelo ensaio de corrosividade a lâmina de cobre, o qual sofre a influência dos compostos sulfurados, notadamente H2S e enxofre elementar. 

Essa mesma referência [4] afirma ainda que outros compostos – como: mercaptanos, etanol e eventuais presenças de ácidos e água – também podem levar a um aumento da corrosividade do combustível e da incompatibilidade com alguns materiais usados em tanques e bombas. 

Neste ponto, é importante citar que as referências consultadas nada dizem especificamente a respeito dos efeitos sobre os elastômeros de engenharia (plásticos e borrachas), comumente utilizados em componentes dos sistemas de alimentação. 

  1. Produzir reduzida emissão de poluentes.
  1. Proporcionar segurança durante o manuseio adequado. 

Já a descrição e especificação da gasolina automotiva, de acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), pode ser encontrada na sua Resolução 807/2020 [7]. Esse mesmo documento [7] traz na sua Tabela 1 as especificações das gasolinas A e C (comum e premium), assim como, a denominação dos testes e respectivas normas de ensaio, para a verificação dessas especificações. 

Oliveira [5] define adulteração de combustível como sendo a adição ilícita de qualquer substância anormal à composição padrão do mesmo, definida pela ANP, com objetivo de obtenção de vantagens financeiras.

Ozaki [8] complementa, afirmando que a adulteração, além de promover a evasão fiscal, prejudica os motores, contribui para o aumento da emissão de poluentes e concorrência desleal entre postos de abastecimento.  

Segundo Oliveira [5], entre outros, os principais adulterantes utilizados da gasolina são: etanol, lubrificantes, hidrocarbonetos aromáticos (BTEX’s) e solventes baratos, como o pentano e o hexano. Entretanto, nada diz sobre as mazelas provocadas nos motores e veículos por esses adulterantes. 

Já Ozaki [8] afirma que o universo das adulterações é bastante amplo. Contudo, os maiores apontamentos de adulteração estão ligados a uma maior adição de etanol anidro do que o especificado pela ANP. Adulteração essa que não só gera perdas de desempenho do motor como altera o pH e a condutividade elétrica da gasolina. Nesse ponto, é importante citar que o metanol (produto nocivo e perigoso) também é elencado como adulterante pela referência [8].

Ozaki [8] também menciona a adulteração por adição de hidrocarbonetos aromáticos (proporcionam maior octanagem) e frações alifática (leves e pesadas) oriundas da indústria petroquímica, que alteram as características de partida e provocam detonação.  

No que diz respeito à detecção das adulterações, Oliveira [5] afirma que não existem testes específicos para a determinação de adulteração de gasolinas. No entanto, existem métodos padrão que são adotados e aceitos, baseados nas normas ASTM, ISSO e EN.

Segundo Olivera [5], uma das formas de se monitorar as adulterações são os ensaios físico-químicos, cujos resultados podem ser comparados com as especificações ANP (Resolução 807/2020 [7].

Como exemplo, entre outros, pode-se citar: densidade, destilação, goma total e teor de etanol.     

Oliveira [5] e Ozaki [8] também sugerem outros tipos de testes que, apesar do custo elevado e da dificuldade de serem encontrados, proporcionam resultados bastante precisos. Principalmente, no que diz respeito à presença de compostos que não deveriam estar presentes no combustível examinado. Ou aqueles cuja presença é permitida, porém, as quantidades são excessivas. 

Como exemplo, entre outros, pode-se citar a cromatografia gasosa e a espectroscopia de infravermelho.

Esclarecidos os pontos técnicos específicos, voltemos ao assunto da obtenção do ressarcimento dos danos causados ao veículo.

Se a opção pela cobrança judicial foi tomada, é preciso tomar algumas precauções de cunho técnico que darão maior robustez à prova que precisará ser apresentada:

  1. É preciso evidenciar que o veículo foi abastecido com o combustível cuja qualidade está sendo posta em dúvida. Logo, coletar os cupons fiscais, com CPF a cada abastecimento, é mandatório [3]. 
  1. Evidenciar a quilometragem do veículo nos abastecimentos (fotografia do hodômetro juntamente com “algo” que confirme as datas), pode ajudar muito na elaboração da prova.
  1. É preciso apresentar um laudo técnico, que não só evidencie os danos causados no veículo, mas que ateste que os mesmos foram causados pelo produto sob suspeita.

Para dar credibilidade, esse parecer deve ser emitido, preferencialmente, por um profissional habilitado, registrado e regularizado no CREA, com vasta experiência no assunto. Um caminho muito utilizado é a solicitação de uma perícia judicial.

Se esse for o caminho escolhido, alguns cuidados precisam ser tomados, para não inviabilizar o trabalho pericial.

Se a escolha foi periciar o veículo antes do reparo, mas o mesmo já foi desmontado, armazenar e preservar cuidadosamente todas as peças. Não alterar nada e não jogar nada fora. Inclusive o óleo lubrificante do motor e o combustível do veículo, cujas extrações devem ser documentadas (por exemplo em vídeo) e seus recipientes lacrados.

Mas se a escolha foi pela perícia documental (após o reparo), os processos de desmontagem e reparação devem ser ricamente documentados: com imagens, vídeos e exames técnicos especializados das partes danificadas. Os mesmos cuidados, acima citados, com o óleo lubrificante e o combustível do veículo devem ser tomados. Pois, muito provavelmente, o perito judicial nomeado (pelo juiz) irá solicitar algo nessa linha.  

*Fernando Landulfo é professor universitário com expertise em mecânica automobilística. Sua formação inclui graduação em Engenharia Mecânica e mestrado em Projeto Mecânico. Ele também é autor de diversos artigos científicos relacionados ao setor automotivo, e publicou o livro “Manual Completo do Automóvel. Motores – Volume 1”

Referências:

[1] BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Gabinete de Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.176 de 08 de fevereiro de 1991. Define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de Combustíveis. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8176.htm>. Acesso em 23/03/2024.

[2] LUYSE, Patrícia. Quais são seus direitos no caso de combustível adulterado? 2022. JUS.com.br. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/99016/quais-sao-seus-direitos-no-caso-de-combustivel-adulterado.>. Acesso em 23/03/2024.

[3] ELAINE. Jennyfer. Conheça os seus direitos ao abastecer com combustível adulterado. 2022. Portal do Trânsito e Mobilidade. Disponível em:< https://www.portaldotransito.com.br/noticias/conheca-seus-direitos-ao-abastecer-com-combustivel-adulterado-2/>. Acesso em: 24/03/2024.

[4] FARAH, Marco Antônio. O petróleo e seus derivados: definição, constituição, aplicação, especificações, características de qualidade [livro eletrônico]. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

[5] OLIVERA, Lucas Guilherme Rocha. Adulteração em Combustíveis Automotivos: Uma Revisão Sistemática. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Química do Petróleo). Centro de Ciências Exatas e da Terra. Instituto de Química. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2018.

[6] PETROBRAS. Assistência Técnica. Temos um compromisso com a qualidade. Disponível em: < https://www.petrobras.com.br/quem-somos/assistencia-tecnica>. Acesso em 24/03/2024.

[7] BRASIL. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). RESOLUÇÃO ANP Nº 807, DE 23.01.2020, DOU 24.01.2020- RETIFICADA DOU 27 DE JANEIRO DE 2020. Estabelece a especificação da gasolina de uso automotivo e as obrigações quanto ao controle da qualidade a serem atendidas pelos agentes econômicos que comercializarem o produto em todo o território nacional. Disponível em:< https://atosoficiais.com.br/anp/resolucao-n-807-2020-estabelece-a-especificacao-da-gasolina-de-uso-automotivo-e-as-obrigacoes-quanto-ao-controle-da-qualidade-a-serem-atendidas-pelos-agentes-economicos-que-comercializarem-o-produto-em-todo-o-territorio-nacional?origin=instituicao&q=807/2020>. Acesso em 24/03/2024.

[8] OZAKI, Sergio Tonzar Ristori. Detecção de Adulteração de Combustíveis com Sensores Poliméricos Eletrodepositados em Redes Neurais Artificiais. Dissertação (mestrado em engenharia elétrica). Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010.

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