Veículos a gasolina mais antigos e aqueles importados não preparados para o uso de maiores concentrações de etanol tenderão a sofrer maiores impactos

NOTA TÉCNICA POR FERNANDO LANDULFO*

Nesta última quarta-feira, 13/03/2024, foi veiculada a notícia de que a Câmara dos Deputados, em Brasília, aprovou o chamado Projeto de Lei (PL) do Combustível do Futuro. Segundo a mídia, trata-se de um substitutivo ao PL 528/20, proposto pelo Deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP). 

É claro que até a sua efetiva entrada e vigor, ainda há um longo caminho a ser percorrido pelo projeto de lei. Só que, desde já, o documento já está dando muito o que falar.

Para proporcionar um esclarecimento estritamente técnico, sólido, independente e isento de opiniões pessoais, o canal Auto Acadêmico vai abordar o assunto baseando-se unicamente em referencial bibliográfico (todos os dados são acompanhados de suas respectivas referências [ ])

Ou seja: livros, manuais e boletins técnicos, trabalhos acadêmicos nacionais e internacionais, especificações técnicas, fichas técnicas de produtos, websites oficiais e de empresas do setor, assim como, a legislação pertinente.

Um dos principais motivos de vários setores da sociedade estarem “botando a boca no trombone”, com relação ao Projeto de Lei em epígrafe, é o aumento nele proposto da quantidade de etanol anidro na gasolina: que passaria dos atuais 27% [4], para 30%, podendo chegar a 35%.

Pois bem deixando, para uma outra ocasião, maiores discussões a respeito das vantagens e desvantagens nas esferas: ambiental, econômica e política, vamos focar nos impactos gerados por essa alteração, do ponto de vista estritamente técnico, que incidirão, diretamente, sobre os usuários dos veículos e aqueles que os reparam: os Guerreiros das Oficinas.

Para começar, vamos falar um pouco sobre gasolina que é comercializada no Brasil. A Petrobras [1] define gasolina como sendo um combustível líquido, derivado de petróleo, para ser utilizado em motores do ciclo Otto. É constituído por uma mistura de mais de 500 componentes: hidrocarbonetos com 4 a 12 átomos de carbono na sua molécula e cuja faixa de destilação situa-se entre 25°C e 215°C.

No entanto, quem determina as especificações dos combustíveis a serem comercializados no Brasil é a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), através das suas resoluções [1]. 

Por exemplo, o artigo 3º da Resolução ANP 807/2020 [3] classifica as gasolinas automotivas em:

  1. Gasolina A comum: “combustível produzido a partir de processos utilizados nas refinarias, nas centrais de matérias-primas petroquímicas e nos formuladores, destinado aos veículos automotores dotados de motores de ignição por centelha, isento de componentes oxigenados.” (nosso negrito).
  1. Gasolina A premium: “combustível de elevada octanagem, produzido a partir de processos utilizados nas refinarias, nas centrais de matérias-primas petroquímicas e nos formuladores, destinado aos veículos automotores dotados de motores de ignição por centelha cujo projeto exija uma gasolina com maior octanagem, isento de componentes oxigenados.” (nosso negrito). 

Ou seja: as gasolinas do tipo A NÃO contêm etanol anidro na sua formulação e NÃO são vendidas ao consumidor final.

  1. Gasolina C comum: “combustível obtido a partir da mistura de gasolina A comum e de etanol anidro combustível, nas proporções definidas pela legislação em vigor” (nosso negrito).
  1. Gasolina C premium: “combustível obtido a partir da mistura de gasolina A premium e de etanol anidro combustível, nas proporções definidas pela legislação em vigor” (nosso negrito). 

Ou seja: as gasolinas tipo C SÃO aquelas vendidas de fato ao consumidor final. 

Um ponto relevante citado pela ANP [4] diz respeito às denominadas gasolinas aditivadas. Segundo o órgão, esses produtos nada mais são do que a gasolinas tipo C acrescidas de aditivos detergentes/dispersantes. A seleção dos aditivos (que devem manter o motor limpo e evitar ou minimizar a formação de depósitos) e efetiva aditivação são responsabilidades de cada distribuidora (nosso negrito).

Outro detalhe que pode ser encontrado no artigo 4º da Resolução ANP 807/2020 [3], é que somente os distribuidores de combustíveis podem realizar a adição de etanol anidro combustível (que deve atender à regulamentação vigente da ANP) à gasolina A, para formulação da gasolina C. 

No entanto, é preciso destacar que NÃO cabe à ANP definir as proporções de etanol anidro a serem utilizadas na formulação das gasolinas tipo C [4]. Atualmente, elas são definidas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) [5]. 

Incumbência essa, que cabia, anteriormente, ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Por sinal, segundo a ANP [4], a Portaria MAPA 75/2015 [6] definiu os últimos valores que são válidos até o presente momento: 27% para a gasolina comum e 25% para a gasolina premium. 

Mas qual é, efetivamente, o papel do etanol na formulação das gasolinas C?

Pois bem, segundo Vilanova [9] os pesquisadores Yücesu e seus pares confirmaram, em seus estudos, que o etanol, quando utilizado como combustível, possui maior octanagem, o que permite a utilização de maiores taxas de compressão e consequentemente maior rendimento térmico. O que faz dele um excelente aditivo antidetonante, em substituição aos compostos de chumbo, cloreto de metila e MTBE, utilizados no passado. Ponto de vista esse que coincide com o de Moço e Gomes Filho [10] e Wäcther [11].

Além disso, como o etanol queima em temperaturas mais baixas e menor luminosidade, tem-se menores picos de temperatura na câmara de combustão, resultando em menores emissões de NOX e menores perdas de energia para as paredes do motor. Energia essa que é dissipada (perdida) para o ambiente pelo sistema de arrefecimento. 

Esses mesmos pesquisadores afirmam que a utilização do etanol aumenta o rendimento volumétrico do motor por conta do maior resfriamento da mistura, devido a sua maior entalpia de vaporização.

Contudo, pela presença do oxigênio na molécula do etanol, tem-se uma redução do poder calorífico do combustível, o que implica num aumento do consumo.

Ou seja, de acordo com o posicionamento dessas referências, o aumento da quantidade de etanol anidro na gasolina tipo C traria, como mazela, a princípio, apenas um aumento de consumo de combustível. É claro que aumentos de consumo implicam em aumento de despesas. Algo que não agrada a ninguém. 

No entanto, é preciso olhar a situação de um outro ponto de vista. O daquele que precisará fazer a manutenção dos veículos. Ou seja: o que esse aumento da quantidade de etanol anidro nas gasolinas tipo C, prevista no Projeto de Lei, pode fazer com as partes internas dos motores, assim como, com os sistemas formadores de mistura e de ignição?

Segundo Wäcther [11], os veículos mais recentes, sobretudo os “flex”, por terem sido projetados e construídos num período onde as porcentagens de etanol na gasolina são mais elevadas, não sofreriam maiores consequências, no que diz respeito à ocorrência de corrosão. 

No entanto, como a frota nacional também é constituída de veículos mais antigos, assim como, clássicos e importados (de localidades onde a porcentagem de etanol anidro na gasolina é de no máximo 10%), faz-se necessário avaliar o impacto que essas maiores quantidades possam oferecer a esses veículos.

No seu estudo, Wäcther [11] analisou as mudanças no potencial corrosivo da gasolina brasileira, com a adição de etanol, tendo como base normas nacionais e internacionais. Também efetuou exames de microscopia ótica e ensaios de polarização, perda de massa e imersão.

Wäcther [11] afirma também que o principal contaminante promotor de corrosão é o enxofre. E alguns metais como o cobre são muito sensíveis ao ataque do enxofre e seus compostos. 

No que diz respeito à formação de depósitos, Wäcther [11] chama de goma o produto da oxidação e polimerização de alguns hidrocarbonetos insaturados. Essa mesma referência afirma que o impacto da formação de goma sobre os motores, pode ser dividido em duas etapas:

  1. A ação do ar e do calor faz com que a gasolina sofra reações de oxidação e polimerização, que formam a goma, que permanece em solução.
  1. A precipitação desse material resinoso que, com o aquecimento pode se converter em uma espécie de verniz que, ao esfriar, endurece, provocando diversos problemas de entupimento e falta de estanqueidade em carburadores, bombas, bicos injetores, assim como, válvulas de motor de respectivas guias.

Nas conclusões da sua pesquisa Wäcther [11] afirma que a adição de etanol à gasolina aumentou a corrosividade da mesma, em função da concentração, nos ensaios acelerados. O mesmo pode ser observado nos ensaios de perda de massa.

O exame de microscopia óptica revelou não só uma maior concentração de alvéolos de corrosão, nas gasolinas misturadas com etanol, como esses alvéolos eram mais profundos. Ou seja, os resultados obtidos mostram que a mistura, no que tange a corrosão, é mais agressiva.

Assim sendo, tudo aponta de forma contundente na direção que os veículos mais antigos e aqueles importados não preparados para o uso de maiores concentrações, tenderão a sofrer maiores impactos. E por essa razão, necessitam de proteção extra-adequada: tratamentos superficiais, alteração de materiais, etc.

Já no que diz respeito à formação de depósitos, nenhum resultado ainda foi apresentado.

*Fernando Landulfo é professor universitário com expertise em mecânica automobilística. Sua formação inclui graduação em Engenharia Mecânica e mestrado em Projeto Mecânico. Ele também é autor de diversos artigos científicos relacionados ao setor automotivo, e publicou o livro “Manual Completo do Automóvel. Motores – Volume 1”


Referências:

[1] PETROBRAS. Assistência Técnica. Temos um compromisso com a qualidade. Disponível em: < https://www.petrobras.com.br/quem-somos/assistencia-tecnica&gt;. Acesso em 17/03/2024.

[2] _. Gasolina. Informações Técnicas (versão Jan. / 2021). Manual Técnico. Disponível em:< https://www.petrobras.com.br/quem-somos/assistencia-tecnica&gt;. Acesso em 7/03/2024.

[3] BRASIL. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). RESOLUÇÃO ANP Nº 807, DE 23.01.2020, DOU 24.01.2020- RETIFICADA DOU 27 DE JANEIRO DE 2020. Estabelece a especificação da gasolina de uso automotivo e as obrigações quanto ao controle da qualidade a serem atendidas pelos agentes econômicos que comercializarem o produto em todo o território nacional. Disponível em:< https://atosoficiais.com.br/anp/resolucao-n-807-2020-estabelece-a-especificacao-da-gasolina-de-uso-automotivo-e-as-obrigacoes-quanto-ao-controle-da-qualidade-a-serem-atendidas-pelos-agentes-economicos-que-comercializarem-o-produto-em-todo-o-territorio-nacional?origin=instituicao&q=807/2020&gt;. Acesso em 17/03/2024.

[4] BRASIL. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Gasolina. Disponível em: < https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/producao-de-derivados-de-petroleo-e-processamento-de-gas-natural/producao-de-derivados-de-petroleo-e-processamento-de-gas-natural/gasolina&gt;. Acesso em: 17/03/2024.

[5] BRASIL. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. SECRETARIA DE PRODUÇÃO E AGROENERGIA DEPARTAMENTO DA CANA-DE-AÇÚCAR E AGROENERGIA. Mistura Carburante (Etanol Anidro – Gasolina) Cronologia. Disponível em: < https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/sustentabilidade/agroenergia/arquivos/cronologia-da-mistura-carburante-etanol-anidro-gasolina-no-brasil.pdf&gt;. Acesso em: 17/03/2024.

[6] BRASIL. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Portaria 75, de 5 de março de 2015. Fixa, o percentual obrigatório de adição de etanol anidro combustível à gasolina. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=281775. Acesso em: 17/03/2024.

[7] BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 13.033 de 24 de setembro de 2014. Dispõe sobre a adição obrigatória de biodiesel ao óleo diesel comercializado com o consumidor final; altera as Leis nºs 9.478, de 6 de agosto de 1997, e 8.723, de 28 de outubro de 1993; revoga dispositivos da Lei nº 11.097, de 13 de janeiro de 2005; e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 17/03/2024.

[8] SANTOS, Antonio Carlos; PEIXOTO, Roberto Aguiar. Efeito da Adição de Etanol à Gasolina na Emissão de Gases do Efeito Estufa. Revista Ciência & Engenharia (Science & Engineering Journal), v. 17, n. 1/2, p. 33-41, jan. – dez. 2008.

[9] VILANOVA, Luciano Caldeira. Efeitos da Adição de Etanol Hidratado no Combustível e do Sistema de Formação de Mistura no Desempenho e nas Emissões de um Motor Bicombustível Brasileiro. 2007. f. 162. Tese (doutorado em engenharia). Escola de Engenharia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.

[10] MOÇO, Itamara Pereira; GOMES FLHO, Hélio. A PARTICIPAÇÃO DO ETANOL COMO ANTIDETONANTE DA GASOLINA. In: ANAIS DO XII CONGRESSO FLUMINENSE DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA / V CONGRESSO FLUMINENSE DE PÓS-GRADUAÇÃO, 2020, Campos dos Goytacazes. Anais eletrônicos. Campinas, Galoá, 2020. Disponível em: https://proceedings.science/confict-conpg/confict-conpg-2020/trabalhos/a-participacao-do-etanol-como-antidetonante-da-gasolina?lang=pt-br. Acesso em: 17/ 03/ 2024.

[11] WÄCHTER, Harald Fradera. Avaliação da Corrosividade de Misturas de Gasolina e Álcool Combustível. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em engenharia de materiais). Escola de Engenharia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.

Uma resposta para “Sobre o aumento da porcentagem do etanol anidro na gasolina”.

  1. Avatar de Marcos Barone

    Ótima matéria, Fernando. Um outro ponto interessante, para vc comentar, sobre o mesmo problema, é o fato destes carros modernos serem todos computadorizados e qquer alteração no combustível levam a mal funcionamento, principalmente os motores turbos.

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